domingo, 29 de maio de 2011

Dirceu Lindoso comenta "Vá e Veja"


UM FILME DE ELEM KLIMOV

Assunto: O filme trata da invasão da então União Soviética, por tropas alemães nazistas, pela Bielo-Rússia. Trata da surpresa do ataque, e sua forma violenta de ataque, matando as populações soviéticas do aquém Vístula, a reação do exército soviético aos ataques e as primeiras formas de resistência por parte da população bielo-russa. Começa com a crueldade do ataque da aviação e do exército nazista. O inesperado para a população camponesa e o cerco de Minski, a capital da Bielo-Rússia. Traduzido, o nome bielo-russia significa Rússia-Branca. É uma das etnias do vasto mundo russo, e constituída em nação. O mundo da velha Rússia é todo cheio de diversidades étnicas, mas que juntas formam um bloco étnico diferente do bloco étnico europeu ocidental. É que a Rússia não foi conquistada, na Antiguidade, pelo Império Romano, apesar da guerra que os romanos lá faziam para aprisionar as gentes eslavas para escravos de Roma e de suas províncias. Daí que escravo, que se dizia em latim servus, ter sido substituído pelo termo eslavo=escravo.
O filme de Elem Klimov possui várias leituras cinematográficas. Para entendê-las, é preciso conhecer a história da Rússia antes de 1917, como se constituía sua sociedade rural, ainda mergulhada nas formas históricas do campesinato do império russo e de sua formação depois de 1917 e de sua Revolução Socialista e Republicana, que ainda não tinha feito uma revolução industrial, como a que tinha feito no século XVIII a Europa Ocidental na Inglaterra e nos Países Baixos.
Neste esquema social do Império Russo antes de 1917, o campesinado da Rússia Imperial era formado de uma massa camponesa sem terra, e que constituía uma massa de trabalhadores rurais na condição de servos da gleba. Que eram, pois, os servos da gleba? Eram uma massa humana de trabalhadores rurais que habitavam os grandes domínios territoriais, e deles faziam parte. Como assim? Não eram escravos como conhecemos aqui no Brasil, negros trazidos das comunidades primitivas de África sob a forma de mercadorias, e vendidos nos mercados negreiros como mercadorias. Não era assim. Os servos da gleba, chamados de almas, não eram vendidos como mercadorias como os escravos africanos no Brasil. Os servos da gleba não eram vendidos à maneira dos escravos africanos nos mercados de escravos do Brasil. Os servos não pertenciam aos donos dos domínios territoriais, pertenciam à terra em que viviam, e só podiam ser vendidos se com eles os donos dos domínios territoriais vendessem também suas terras. O servo da gleba pertencia, pois, à terra, à propriedade, e era parte indissolúvel dela. Numa venda de propriedade os servos iam com a terra, como parte dela, e não era um bem mercantil independente da propriedade rural. Para os senhores rurais vender os servos tinham que junto, numa venda única, vender os servos da gleba, suas almas.
A partir do início do século XIX começou a fragmentação dos grandes domínios rurais do Império Russo, e se começou a formar uma classe de médios proprietários rurais: os kulaks. Palavra que na língua russa quer dizer punho, pois era com ele que os proprietários batiam em ser servos ou almas, castigando-os. E com essa nova classe de proprietários rurais começou a fragmentação das grandes proprietários. Quando estive na Rússia me hospedei na Estrada de Rolamcolamski, na dacha que diziam ter sido da família de Trotski, cujo pai era um rico kulak. Trotski passou para o socialismo, mas o pai , não. E Trotski se transformou num dos maiores líderes bolcheviques, mas o pai dele continuou um kulak.


Foi essa massas de servos da gleba que formava, durante as revoluções de 1905 e 1917, o campesinato revolucionário do Império Russo. A Rússia, durante o Império, tinha um operariado pouco numeroso, que se concentrava em Moscou, São Petersburgo e Letônia. O palácio do Inverno, em São Petersburgo, foi tomado pela liderança letã dos bolcheviques, do então operariado russo.


Para se compreender esse filme de Elem Klimov é preciso que se tenha em mente esses dados. O que os alemães prendem em armazéns rurais e incendeiam os prédios, matando mulheres, crianças e homens, era o povo russo saído do campesinato imperial, e com o socialismo transformados em trabalhadores de fazendas coletivas.


No filme de Elem Klimov há três linhas essenciais de interpretação: a da composição do povo russo das fazendas coletivas, um povo que não era mais o de servos da gleba; e a de interpretação dos prisioneiros alemães e russos pro-alemães: diz o oficial alemão, que mandou tocar fogo nos barracões cheios de trabalhadores rurais e suas famílias: Há povo que não merecer o futuro. Frase eminentemente nazista; e a última, quando aparece numa série as imagens dos nazista sendo metralhados, uma imagem simbólica admirável, e nas quais por último aparece a de Hitler criancinha nos braços de sua mão. Uma criancinha como qualquer outra, inocente e alegre, que nada se parece com o Hitler político que atacou a Rússia Soviética. Uma lição excelente de coisas: que o homem é um ser diferenciado. Nasce um, e a cultura o transforma em outro. O Hitler criança, não tem nada que ver com o Hitler político. A maldade não está na biologia, nascer homem e mulher, e ser crianças, mas na cultura que cada um recebe e nela se forma. E nela tem sua forma de morrer. Pela biologia nascemos, todos do mesmo jeito: chorando, espantados, movendo os pés, agarrando o peito da mãe para mamar, botando o que pega com as mãos pondo na boca. O terrível vem quando entramos na cultura, porque é na cultura que se gera o crime. Por que é na cultura que se mata. A biologia é apenas a forma da gente nascer e morrer. Viver se vive na cultura. E morrer, se morre acompanhado da cultura.

Dirceu Lindoso (escritor, historiador e Doutor Honoris Causa pela UFAL)

Nenhum comentário:

Postar um comentário